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Obsessiva.mente

Obsessiva.mente

Ao final do dia enrolam-se os toldos na praia (I)

A areia está húmida, argilosa. Absorve toda a humidade do mar de inverno e da cacimba.  Uma sauna invertida, esta humidade que não me deixa respirar fundo mas em vez de calor traz consigo um vento frio, cortante.

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Penso nos verões aqui nesta praia, em criança. A minha avó fazia questão de alugar sempre os mesmo dois toldos, contíguos. Ficavam perto do passadiço, e da rampa de saída da praia, que dava acesso à marginal. Os toldos eram colocados em fileiras, assegurando entre cada fila espaço de passagem ou para se estender uma toalha. Todos os dias de manhã, os nadadores-salvadores desenrolavam os tecidos, prendidos e esticados por cordas atadas a traves de madeira, que encaixavam perpendicularmente nos postes. Ao final do dia, repetia-se o ritual em reverso, marcando a hora de saída da praia, que também era a melhor hora de praia.

Sendo os toldos da ponta, a minha avó assegurava que tínhamos o menor número de vizinhos, e a maior área em redor dos toldos para estendermos as toalhas. O facto da avó escolher a fila de trás dos toldos também tinha o seu argumento científico. Uma vez que as filas mais perto da água sofriam com a subida da maré, ficarmos na fila mais longe da água assegurava que não diminuia a nossa área de sol disponível em redor.

Subindo pela rampa de saída da praia, era 1 minuto a pé de casa. A casa também era sempre a mesma. Tinha quartos suficientes, espaço na sala para mais colchões e sacos-cama, e algumas casas-de-banho para servirem os banhos de todos os primos. A tia Lena tratava sempre do jantar, e ao almoço íamos sempre ao mesmo restaurante, sentávamo-nos sempre na mesma mesa, e a minha avó sentava-se sempre no mesmo lugar - aquele com menor corrente de ar e mais ângulo de visão para todos. 

Na altura não me apercebi que era feliz. Olho a areia fria a ser açoitada pelas ondas. Olho para mim a mergulhar nas ondas de verão. Desvio-me das algas com rapidez e destreza. Brinco aos golfinhos e às sereias com a minha prima mais nova, enquanto a minha irmã teima em brincar às amonas. Nesta praia, tantos anos depois, percebo que estas memórias tinham deixado de ser memórias. Quase como se não fosse a minha vida mas a vida de alguém de quem ouvi falar ou vi nalgum fillme. Essa vida fugiu, como a maré que vaza. Como as ondas, existem apenas um momento e logo deixam de existir. 

Ao final do dia, os nadadores-salvadores voltam a enrolar os toldos de novo, e a arrumar as cordas. Ao final do dia a minha avó já está em casa. Ao final do dia, brincamos pela praia vazia, e avaliamos a possibilidade de um último mergulho medindo o tempo de secagem para regressarmos a casa. A avó não deixa entrar com areia ou molhar os sofás. Ao final do dia, lembro a última vez que olhei para a minha avó, fria, dentro de num caixão. Era feliz, e não sabia. Volto a não saber, porque não me lembro. Volto a não ser feliz porque isso ficou no verão, enrolado num toldo ao final do dia, enrolado numa onda cheia de algas, enrolado em croquete de areia.

Enrolado num beijo repenicado da minha avó.

O samba dos pés descalços

Tínhamos tudo, mas não fomos capazes de nada. Pegaste na chave, eu dobrei lençóis e juntos colecionávamos olheiras. As noites de conversa e os dias de andarmos pela casa a brincar como duas crianças eram solarengos e preguiçosos. A plenitude de simplesmente estarmos a existir um com o outro bastava-nos. 

Mas não basta. 

Pisco os olhos, inspiro. 

Não basta. 

A maior felicidade que já vivi não basta.

Ao mesmo tempo que pergunto, afirmo. E por momentos, a quebra de tensão que este pensamento causa parece um pequeno tremor de terra que me leva a agarrar a superfície mais sólida. Algo estável que me mostre para onde puxa a força da gravidade, e me cole os pés ao chão. 

Um veneno frio percorre a caixa torácica. Tudo arde, mas não me apetece chorar. Parece que alguém pegou fogo gélido à minha corrente sanguínea. Entorpecida, saio porta fora. Não sei o destino, simplesmente a paralisia de me pensar enganada sufoca-me a esta casa. A minha casa de bonecas, a mais bonita, luminosa e alegre que me sufoca. 

Caminho debaixo do sol de primavera, como se tudo fosse tocado pelos risos das nossas brincadeiras dos dias solarengos e preguiçosos. A paisagem não ficou a saber do pensamento que hoje envenena a minha alma. Devia dizer-lhes. Explicar às flores e aos patos como hoje não é dia para se passearem ao sol. Escondam-se, porque bastarmo-nos não basta e não fomos capazes de nada com o tudo que tínhamos. 

O sonho foi grande, gigante, e alimentou o suficiente até não sermos capazes de mais. Ambos tão felizes, dois pares de pantufas à nossa espera num mesmo tapete, como se a indissolubilidade multiplicasse o samba nos nossos pés descalços. Mas não basta. Toque-se o samba, a ópera e indie, que hoje nada nos vale, nada. Deus devia ver isto para perceber de uma vez por todas que a humanidade não tem remédio. A estúpida teimosia divina de nos massacrar e perdoar em instantes de segundo vizinhos. Permitir ou desejar o sofrimento das pequenas criaturinhas à Sua imagem e semelhança. Tocam os sinos. 

Alguém devia avisar as flores, os patos, e também as crianças, que hoje não é dia de brincar, de dar gargalhadas, de mostrar a quem passa como é feliz a primavera. Merda da primavera e das suas alergias, fingir parecer uma princesa mas esconder o quanto não basta eu e tu a brincar pela casa. 

Passa uma mota. Serão quatro e meia? São horas de te ir buscar. 

Abismo

Sobe, desce e volta a subir. 

Sobe, desce. 

Sobe, desce, sobe.

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Respiro fundo, espaçam-se os batimentos. O ritmo desta linha que desenha a vida em picos acentuados de atividade eléctrica em várias partes do meu corpo. Que ritmo dançante, este. Quase que desenhado por um maestro, às vezes mais rápido, às vezes mais lento. Numa orquestra que preenche as células com vida. 

Como é possível que esta linha de vida se encontre num corpo tão morto?

Volto a olhá-la. Quase que me seduz a sua existência. Pisca-me o olho sempre que sobe e desce, uma gaiata malandra que brinca comigo. E por vezes se esconde de mim. 

Que incrédulo que sou. Por muito que a olhe, não acredito. Não quero acreditar. Mais, não quero ter que honrar a sua existência. 

 

Não podes seguir sem mim? Deixa de me provocar! Pára com as tuas brincadeiras e, simplesmente, mostra-me um horizonte. 

 

Respiro fundo. Existes em mim, tambor pequenino. Minha orquestra privada, quanto te odeio por vezes. 

Carta a um marciano preso no planeta terra #1

Acho que está na altura de te dizer que enches tudo por onde passas. Cada vez que te encontro fico cheia de ti.

 

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É qualquer característica que tens que transforma tudo à tua volta em pleno. Não sou especialista na matéria, mas sei-o por experiência. Atenção: não sou a única. E sei de outros que passaram por ti e sentiram o mesmo. Tenho a certeza que a partir de amanhã vão reparar nisso em ti, se já não o fizeram. A tua ambição e motivação vão além-terra. Queres conhecer os astros, declarares-te marciano. És como as estrelas, deixando um rasto de luz pelo espaço sideral por muito mais tempo que o de vida útil. Talvez por isso, sempre que alguém se encontra contigo saia cheio. Pleno. Começa amanhã com a consciência de que marcas os sítios por onde passas, mil anos-luz mais do que o oposto.

Monstros da noite

Há qualquer coisa na urgência da noite. Talvez sejam os monstros na penumbra, a espreitar. O desconhecido, esse sempre me assustou.

 

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Talvez sejam os monstros, talvez sempre tenham estado em todas as penumbras. Só eu é que não os via. Mas é à noite que as luzes passam depressa, fugazmente aparecem e desaparecem. E a escuridão regressa, como se se encolhesse a chorar, com saudades da luz que passou. Talvez por isso, sempre tenha tido medo do desconhecido. Do que não se vê, e vive no escuro. Porque não vejo, receio. Encolho-me a chorar, com saudades dos faróis que passaram fugazmente. Reina o silêncio. Que noite, esta. Os motores também dormem, os passageiros não esperam os autocarros, sonham nas suas casas. A oficina está fechada, não se ouvem os pregos a murmurarem juras de amor com a madeira, sobre a pressão da pistola. O vizinho, esse faz barulho. Deita-se sempre tarde. Dizem que é triste, morreu-lhe o único filho. Que noite, esta. Tudo se acalma, e a respiração prolongada significa uma paz momentânea, algumas horas de sono e sonhos. Mas para alguns, a noite aqui fica, impávida, com os seus monstros a espreitarem na penumbra. O vizinho acordado de certeza que conhece os monstros. Eu sei que eles estão aqui, mas não os vejo. São eles que espreitam, na penumbra. Que tornam a noite pacífica num lamentar doloroso. Dou graças por existir a luz, que regressa sempre no final da noite. Que volta a trazer os motores apressados, os passageiros dos autocarros a bocejarem a sua espera. A oficina abre contente, bom dia a toda a gente, são pessoas cá da terra, de muitos anos. Lá estão os pregos, com toda a força madeira a dentro. O vizinho acorda tarde, dorme mal. Esse só vai fazer barulho lá para as tantas. A noite parece terminada. A urgência que ela carrega dá lugar a um café quente e um recomeço. Logo à noite volto a encontrar os monstros, esses esperam-me sempre na penumbra.

Desafio

Normalmente opero por programações. Cálculos que me façam mover, agir e falar dentro do que consigo controlar. Se houvesse alguém que fosse cientista da sua existência, gostava de ser eu. Teria um laboratório onde poderia fazer experiências para aprender a controlar os erros. Depois, reprogramava-me para evitá-los. Poderia prever as minhas ações e reações a tudo, e viveria roboticamente pacífica.

 

Desafio.jpg

 

Até que me cruzo com alguém que me diz:

 

- Escondes tão bem tudo o que sentes.

 

Esta frase fez um curto-circuito que cortou a minha corrente elétrica.

Programar-me, prever-me e refrear-me - pelos vistos ser um robot não é ser feliz. É ser seguro. É viver numa torre isolada, sem ligações nem comunidade. Comunidade para comunicar. Viver em segurança é não arriscar em ser feliz.

 

E a corrente elétrica que gera energia e liga as pessoas, a que faz faísca, é a vulnerabilidade.

Aqui está um bom desafio.

 

Guardo-te em pedacinhos

Quero guardar-te em pedacinhos.

 

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Vou ficando com pequenas recordações. Momentos que ficam gravados em pedaços de objetos, copos, bilhetes. Coisas do dia a dia por onde passaste, e onde agora permaneces eternamente. Não tu, por inteiro. Um pedaço de ti. Uma memória de um sorriso teu. De uma frase. De um olhar. De um jogo. Do teu cheiro.

 

Pequenos nadas que se tornam eternos. Encapsulei-te para sempre neles. Por enquanto, é o que de ti tenho. Talvez nunca tenha mais do que isto. Mas só a memória de ti já é mil vezes melhor que a minha existência.

Quem se encontra nunca sai o mesmo

Encontrei-te, finalmente. Onde estavas? Estava aqui à tua espera há tanto tempo. Ficaste ocupado? Alguma coisa te empatou? Estavas-te a preparar para me encontrar? Ainda bem que vieste. Estava à tua espera.

 

Quem se encontra nunca sai o mesmo.jpg

 

Gostava de ter a coragem para te dizer que cada vez que te encontro fico cheia de ti. Não sei se já existiu um alguém que ousou dizer-to. Facto: és a melhor pessoa que conheço. És tão boa pessoa que nem sonhando te imaginaria. E sou muito sonhadora. Passei a minha vida a sonhar contigo, a imaginar-te e a desejar-te. Mas nem nos meus melhores dias chegava a ti. Só podes ser coisa de Deus.

 

Eu também sou coisa de Deus. Mas vejo à lupa os meus defeitos. E cada vez que te encontro, cada vez que me falas, algo em mim acontece. De repente, os meus defeitos têm propósitos de melhoria. Tenho uma vontade - nova em mim - de querer ser a melhor pessoa que conseguir. E isso acontece quando te encontro. Porque te encontro. Porque há um espaço comum que habitamos, um reino encantado, que me transforma. Cada vez que te deixo, saio cheia de ti. Cheia de uma coisa muito boa, cheia de uma certeza de que Deus existe. Que cuida de mim. Que faz coisas boas para mim.

 

 Finalmente vieste.

 

 

Arrisca

Tomar decisões que carregam uma vida, que comprometem para sempre a existência, têm tanto de terror como de loucura.

 

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Como saltar de paraquedas. Existe sempre o terror da distância, em altura, até ao chão. O medo de que o dispositivo de abertura, por razões ocultas, trave. Mas há um formigueiro desde a ponta dos pés até à raíz do cabelo que explode na boca com um grito, e transforma em impulso as dúvidas que obscurecem.

Pode-se dizer que é irresponsável, ou imaturo, querer o salto para o abismo. Não ter cabos de segurança, não ter o chão gratuitamente. Mas no fundo do meu medo, eu acredito que posso voar. Não é esse o sonho?

Beijava-te aqui

Falámos horas. Sem pressa.

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O mundo girava à volta daquela conversa. Falámos de trivialidades, e de coisas sérias. Falámos de jogos de tabuleiro e de gin, de planos e de como queremos educar os nossos filhos.

Partilhamos uma vontade de pertencer a alguma coisa. Temos isso em comum. 

De repente, olhámos à volta. Sem percebermos como, estávamos perante uma paisagem incrível. Como se tivéssemos viajado para outro lugar. Era uma paisagem só nossa, no meio da multidão. Um momento. Beijava-te aqui, agora. Mas o primeiro beijo carrega em si todo o peso do mundo. Carrega suposições, expectativas, e medo. Carrega o princípio de coisas infinitas.

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